quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Vinte e um tiros na Justiça


Portal Terra
Juíza foi encontrada morta na madrugada de sexta-feira
  Difícil acreditar que aquela mulher quase menina, com cabelos longos pretos, lisos e franja, pudesse ser uma juíza, responsável pelo cumprimento da lei e emissora de sentenças sobre perigosos bandidos. Pois Patricia Acioli assim o era.  Reconhecida pelos pares, temida por seus juízos severos e sem contemplação, sobretudo com o crime organizado.
           A juíza do "martelo de ferro" ou "martelo pesado", como era conhecida, ignorava o sentimento do medo.  Nem recuava diante do crime. Mais implacável ainda quando os réus em questão eram policiais.  Em sua lógica de juíza, magistrado que tem por função ministrar a Justiça, à semelhança de desembargadores e ministros, Patricia não titubeava em desempenhar sua função.
           Conhecida como uma “juíza inflexível”, que durante a última década condenou cerca de 60 policiais envolvidos em esquadrões da morte e milícias, Patricia costumava pedir a pena máxima quando os acusados eram policiais. Não tolerava o fato de que aqueles que tinham como dever defender a vida e as pessoas passassem a atacá-la, agredi-la, exterminá-la, no descumprimento abusivo da lei.
           Era uma servidora pública da Justiça e como tal agia.  Todas as tentativas de fazê-la "aliviar" sentenças ou tornar mais leves penas aplicadas a membros do crime organizado foram em vão.  O martelo se abatia, pesado, manejado pela juíza destemida e incansável no desempenho de seu serviço. Pois não é este o significado  da palavra "ministério"?            Essa trajetória implacável foi interrompida por uma saraivada de 21 tiros desfechada com a descarga do ódio e da vingança que explodia em fúria contra o destemor persistente e firme de Patricia. A família, os filhos, os amigos ainda não conseguiram sair de seu estupor com a bárbara execução. E o estado do Rio de Janeiro treme, assustado com o fato e seus desdobramentos e significado.
           Várias análises foram feitas sobre o brutal assassinato.  Entre elas, destaca-se a avaliação da Anistia Internacional, que aponta quem verdadeiramente perde com o desaparecimento da juíza.  "O assassinato de um juiz por homens armados destaca os profundos problemas da cidade com a corrupção policial e o crime organizado".  E segue: " A morte de um juiz que estava simplesmente realizando seu dever desferiu um duro golpe sobre o estado de direito e o sistema judicial no Brasil”.
            Quando a Justiça é silenciada a tiros, quem defenderá a lei e zelará pela segurança de um povo?  Calando a voz de Patricia Acioli, o crime organizado no Rio avança e ganha terreno.  E quem perde é a população, cada vez mais acuada e temerosa de até onde podem chegar os agentes do terror, que não se consegue conter.  A corrupção avança e o desembaraço dos bandidos, também.  Não tendo nada a perder, eles não hesitam diante dos assassinatos sumários, como o da juíza, para amedrontar a população e acuar a polícia e a Justiça.
           O governo do Estado prometeu medidas enérgicas e rápidas para prender e punir os responsáveis pelo crime.  A família espera uma solução. Assim também o povo.  Espera-se sobretudo que não tenha que morrer violentamente mais um magistrado. Ou dois. Ou mais.  Sobretudo que isso não aconteça porque a apuração do crime se arrasta, morosa e pouco eficaz.
            O otimismo gerado na população carioca e fluminense pelo estabelecimento das UPPs e sua aparente eficácia em pacificar morros e comunidades antes atingidas pela violência recebeu golpe mortal com a execução da juíza.  A corrupção da polícia encontra-se exposta e aberta como ferida purulenta nas entranhas da cidade e do estado.           Enquanto isso, a vida privada da juíza é devassada, exposta à indiscrição pública, comentada nas esquinas.  Que importa quem era ou não seu namorado?  Em que influi no perfil do caso se a juíza namorava ou não um policial?
           O que importa, o que horroriza, o que amedronta e causa indignação é que, matando Patricia, o crime expôs seu rosto.  E ele é feio, medonho. Odeia a Justiça e quer silenciá-la por qualquer meio, não importa quão escuso seja.  Ontem foi a juíza Patricia Acioli. Amanhã poderá ser outro ou outra.  Quando os juízes, servidores da lei, se encontram indefesos e ameaçados, a segurança passa a ser verdade desejada e inexistente no horizonte vital de um povo.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga e professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do amor' (Ed. Rocco)

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